Poucos termos atuais na indústria dos games são vistos de forma tão antagônica por público e estúdios quanto os jogos como serviço.
Por um lado, vários consumidores lamentam quando ficam sabendo que determinado lançamento terá esse formato. Por outro, desenvolvedoras quebram a cabeça em busca de uma solução de receita contínua e uma comunidade fiel misturada a um sucesso de crítica.
Equilibrar tudo isso não é tarefa fácil, mas esse tipo de projeto tem sido cada vez mais comum em diferentes gêneros e plataformas. Até por isso, é importante entender o que ele significa e também quais as controvérsias envolvendo esse formato.
Qual o conceito de jogos como serviço?
Games as a Service (GaaS), o formato live service ou simplesmente jogos como serviço são um modelo de negócios envolvendo jogos digitais. Essa é uma entre várias possibilidades de lançamento e continuidade de um produto nesse mercado.
Como o próprio nome sugere, no GaaS o jogo é tratado como uma experiência contínua em vez de algo adquirido e aproveitado uma única vez. Isso significa que ele pode ser consumido ao longo de um grande período sempre com novidades, que justificam uma cobrança recorrente.
A venda de bens digitais “como serviço” virou tendência há alguns anos na indústria da tecnologia. Cada vez mais empresas oferecem produtos nessa modalidade, normalmente cobrando uma assinatura mensal ou anual em vez do preço cheio para a aquisição definitiva. Em outros casos, a desenvolvedora bloqueia certos recursos, liberados apenas mediante pagamentos extras.
Como exemplo, há vários softwares como serviço (SaaS) que se encaixam nessa categoria, como o pacote Adobe Creative Cloud — que inclui aplicativos como o PhotoShop, Premiere, Acrobat e outros. Antivírus, gerenciadores de senha e outras ferramentas também operam cada vez mais por essa lógica.
Nos jogos, isso significa que um mesmo jogo recebe atualizações de conteúdo, correções de bugs, otimizações, rebalanceamento de personagens, mais mapas, novos personagens ou itens cosméticos, como skins para armas e roupas.
Os títulos multiplayer online foram pioneiros desse recurso. Runescape e World of Warcraft são citados como as primeiras grandes inspirações do modelo no começo dos anos 2000, assim como Team Fortress 2. Já a chinesa Tencent é uma das pioneiras a fazer isso no mobile, em especial no final da década com o início da disputa entre Android e iOS.
Como identificar um jogo como serviço?
Atualmente, boa parte das adições de conteúdo no live service se organizam por temporadas, com múltiplas novidades de uma vez. Isso também significa uma nova cobrança ou então a renovação da loja de itens, que pode acontecer todos os dias, ao longo de semanas, meses ou até anos, dependendo do sucesso do projeto.
Esse formato não se restringe a um gênero (como RPG, ação, quebra-cabeças ou FPS) e nem plataformas, valendo para PCs, consoles, dispositivos móveis ou todos eles ao mesmo tempo. Além disso, os jogos como serviço muitas vezes estão ligados ao multiplayer, mas esse nem sempre é o caso.
Por outro lado, um jogo receber um único DLC isolado e ser dado como finalizado não significa que ele é de serviço. As atualizações precisam ter uma regularidade e incluir novas formas de geração de receita.
Exemplos de live service populares dos últimos anos incluem títulos como:
- Fenômenos globais como Fortnite, PUBG, Rocket League e Pokémon Go;
- MOBAs como League of Legends e Dota 2;
- Títulos de multiplayer competitivo como Valorant, Counter-Strike: Global Offensive 2, Call Of Duty: Warzone; Overwatch 2 e Destiny 2;
- RPGs no formato de World of Warcraft, Final Fantasy XIV: A Realm Reborn e Genshin Impact;
- Jogos de vários gêneros com modos online como FIFA, NBA 2K, Grand Theft Auto Online, Sea of Thieves, Fallout 76, Marvel’s Avengers e Suicide Squad: Kill the Justice League.
Já a monetização ocorre em várias formas. O jogo pode ser travado por uma mensalidade para ser acessado como um todo; gratuito para jogar com microtransações ou anúncios; ou então ter um preço inicial fixo, mas cobrar por passes de temporada, modos online ou itens cosméticos.
É possível também instituir mecanismos mais controversos, como lootboxes e gacha — uma fonte imensa de receita quando bem aceito pela comunidade, mas a possível derrocada de um projeto se mal sucedido.
Por que todo estúdio hoje quer um projeto assim?
O principal fator que direciona uma desenvolvedora a adotar o live service em um ou múltiplos projetos é a geração constante de renda. Um título contínuo gera receita por até anos após o seu lançamento, não garantindo verba apenas nas compras únicas que costumam ser mais intensas no início das vendas, mas tendem a cair.
E esse dinheiro pode ser fruto de vários aspectos diferentes: itens cosméticos, passes de batalha ou temporada, novos personagens, e as populares skins.
Outro ponto que atrai estúdios é a manutenção ou atualização via temporada aparentar ser “menos trabalhoso” que desenvolver um novo jogo do zero. Além disso, em alguns casos o lançamento costuma ser mais rápido, já que parte do conteúdo é feito enquanto o público joga um segmento já pronto.
Um live service é também a possibilidade de fidelizar um público. Mesmo reduzido, ele vai gastar com frequência e pode migrar para outros projetos da mesma desenvolvedora.
Pesquisas recentes mostram que as gigantes do setor estão dispostas a migrar ou intensificar esforços para essa direção. Sony e Warner Bros Games, por exemplo, já indicaram interesse em adotar os jogos de serviço como prioridade. Porém, a marca japonesa já reduziu esses esforços após alguns resultados negativos e até cancelou projetos, como o caso do multiplayer de The Last of Us.
Jogos como serviço são ruins para a indústria?
Apesar de parecer uma ótima ideia para estúdios e jogadores ao olharmos apenas para os pontos positivos, a situação prática dos jogos de serviço tende a ser outra.
Desenvolver um live service não é nada simples. Eles envolvem uma mudança de paradigma, orçamento, estratégia e às vezes até engine por parte de um estúdio. Além disso, encontrar as mecânicas certas para agradar o público pode levar a adiamentos e mais gastos com o desenvolvimento.
Outro aspecto perigoso envolve a manutenção de conteúdo “travar” uma equipe em um mesmo projeto. Dessa forma, o GaaS impede que times inteiros passem para uma sequência ou nova IP, por exemplo, que também poderia ser um jogo bem sucedido.
A busca por uma receita contínua e generosa, entretanto, costuma ser o grande ponto fraco de um jogo como serviço. O modelo de cobrança pode afetar o gameplay e gerar um título repetitivo ou cansativo.
Já errar a mão no preço ou na quantidade de conteúdos travados pode desagradar o consumidor e gerar uma debandada em massa do público. Para piorar, quando ele é descontinuado, em muitos casos os servidores são fechados e o título fica indisponível para quem deseja voltar para aquele universo por algum motivo, por preservação ou nostalgia.
A difusão de tantos jogos “sem fim” ainda reduz o espaço de títulos independentes, normalmente de pequena duração e cobrança única, ou até os AAA single-player, considerados de baixo custo-benefício mesmo com boas vendas. É o caso de Hogwarts Legacy, que dominou 2023 em unidades comercializadas, mas não foi tão bem visto pelo estúdio por ser do modelo de negócios tradicional.
Apesar de um certo preconceito cada vez mais estabelecido em relação a esse modelo de negócios, alguns jogos como serviço podem ser (e constantemente são) bem sucedidos. Helldivers 2, uma das grandes surpresas de 2024, é talvez o exemplo positivo mais recente.
Equilíbrio é a chave, mas não é simples
Jogos de serviço podem ser uma alternativa viável e saudável na indústria de games. Fenômenos como Fortnite mostram que há espaço para esse modelo de negócios e que a sua popularidade está longe de diminuir.
Porém, o mercado não pode ser restrito a esse tipo de formato ou perder a atual diversidade para favorecer essa busca por maiores lucros. Uma inundação de GaaS simultâneos não seria uma boa situação para as empresas, para o público e nem para os criadores de jogos.
Equilibrar recursos pagos com conteúdo de qualidade é a chave, mas nada fácil de atingir. E entender o público é essencial, em especial em uma comunidade que inclui desde casuais até jogadores veteranos e de longas sessões semanais, com expectativas e orçamentos variados.
A padronização de um modelo de negócios como esse pode limitar a criatividade de desenvolvedoras, fora reduzir a quantidade de títulos que uma pessoa consome ao longo do ano. Não existe fórmula pronta ou uma receita mágica para um jogo como serviço prosperar, mas hoje são muitas as companhias atrás dessa recompensa.
Fontes: Gameopedia, Digital Trends, Games Industry