Nos anos 1990, os irmãos Rick e Tom Smith fundaram uma empresa de segurança na garagem da casa da família, em Tucson, nos Estados Unidos, depois que dois amigos foram mortos a tiros em uma ocorrência policial. A ideia de ambos era criar tecnologias não letais para proteger vidas.
Com mais de 2.500 funcionários no mundo todo, a Axon é mais conhecida por seu taser, arma não letal que usa choque elétrico para incapacitar um alvo. Mas também fabrica uma variedade de outros produtos, como câmeras corporais, software de gerenciamento de evidências e sistemas de comunicação. Entre seus mais de 15.000 clientes em todo o mundo, incluindo agências policiais, departamentos de bombeiros e departamentos de correção, está a Polícia Militar do estado de São Paulo.
Desde 2020, a Axon fornece para a PM-SP as câmeras corporais instaladas nos uniformes dos seus agentes policiais. Em entrevista por e-mail a VEJA, Smith, que esteve no Brasil há cerca de 15 dias, fala sobre a necessidade de se criar um sistema que diminua e até extinga o uso da bala. Algumas respostas foram editadas para melhor compreensão.
Como CEO da Axon Enterprise, como você avalia o impacto das câmeras corporais na segurança da população? Houve muito debate sobre os direitos das pessoas que interagem com a polícia e o argumento de que os equipamentos “só servem para proteger bandido”. A experiência que vemos universalmente com as autoridades de segurança com que nos relacionamos é que, antes da implementação das câmeras, os policiais ficam receosos de que essa medida possai questionar todas as suas ações. Mas, como um dos líderes de um dos sindicatos de polícia estaduais nos Estados Unidos já me disse, nenhum policial quer usar uma câmera corporal até tê-la usado por 30 dias; depois disso, eles não querem sair em patrulha sem ela.
Por que isso? O fato é que essas câmeras capturam a verdade do que aconteceu. E é muito comum que policiais sejam falsamente acusados de fazer coisas ruins. Se pensarmos a respeito, eles estão frequentemente interagindo com criminosos, além, é claro, do público em geral. E assim, o que os policiais rapidamente percebem é que, se estiverem fazendo a coisa certa, não há proteção mais importante para eles do que uma câmera corporal. E, em última instância, essas câmeras preservam um registro do que aconteceu em algumas das interações humanas mais controversas no mundo moderno, que é entre um policial e um cidadão.
Como as câmeras corporais podem ajudar a proteger os policiais de agressões e outros perigos e, ao mesmo tempo, melhorar a transparência e a accountability das ações policiais? Outra coisa fundamental que as câmeras fazem é desescalarem as situações, ou seja: há um efeito bem conhecido na psicologia chamado efeito do observador. As pessoas se comportam melhor quando sabem que estão sendo observadas ou que serão responsabilizadas por algo que está sendo registrado. Vemos isso o tempo todo. Se alguém está sendo filmado e sabe disso, em várias situações, começam a se comportar de maneira diferente.
Como isso funciona na prática? Quando as pessoas estão sendo gravadas, têm menos probabilidade de fazer algo ultrajante, ilegal, pelo qual haverá consequências. Sem a gravação, as pessoas são mais impulsivas e podem achar que podem agredir um policial e depois alegar que o policial estava fazendo algo terrível, quase como se tivessem uma carta branca para agredir policiais porque mais tarde poderiam alegar algo que pode ou não ter sido verdadeiro. As câmeras corporais eliminam essa opção. E assim, tendem a impactar o comportamento de todos para melhor. E, se alguém fizer algo grave, todos podemos saber qual é a verdade, porque agora há uma gravação, não apenas duas pessoas contando duas histórias muito diferentes. E as pessoas podem ser responsabilizadas pelo que fizeram.
Quais são os principais desafios para a implementação e uso efetivo das câmeras corporais? Realmente, é uma questão de escala. Eu tenho uma câmera comercial portátil, que é uma bela câmera. Eu a uso para gravar meus filhos. Não uso as câmeras corporais que minha empresa produz para gravar vídeos dos meus filhos, porque elas não são projetadas para isso. Elas não me permitem excluir os vídeos, e toda a gestão é feita nos bastidores através de um administrador. Portanto, isso não é uma ótima experiência para um consumidor que deseja ter controle total sobre o que grava em seus dispositivos. Mas para uma autoridade de segurança, é realmente o que você precisa.
Se tivermos dez mil policiais com câmeras portáteis comerciais, como vai ser o processo de extração de todos os vídeos dos equipamentos? Se alguém quiser excluir um vídeo, é possível fazê-lo diretamente na câmera ou durante o processo de upload. Portanto, ao pensar em implantar câmeras em grande escala, é preciso garantir que o vídeo capturado seja confiável, o que significa que ter sistemas para garantir que os policiais não possam excluir vídeos, não possam editá-los e que, uma vez que isso seja inserido em um sistema administrativo, o acesso seja controlado, apenas pessoas específicas possam visualizá-los, e que esses vídeos tenham protocolos de autenticação para comprovar, com alto grau de certeza científica, que, sim, de fato, este é o vídeo original sem modificações.
Trata-se, portanto, do sistema todo, não? Portanto, na verdade, o desafio não é o hardware da câmera em si. É todo o sistema de como se gerencia milhares delas de maneira altamente confiável e repetível. Isso também precisa ser eficiente em termos de custos e fácil de fazer. Essa é uma das razões pelas quais introduzimos o software em nuvem para autoridades de segurança pública quando começamos, em 2008. Datacenters em nuvem podem fornecer muito mais segurança do que a maioria das autoridades policiais poderia fazer por conta própria, devido à quantidade de infraestrutura e talento que podem ser associados a um Datacenter em nuvem, na ordem de bilhões de dólares de algumas das melhores empresas de tecnologia do mundo. É, simplesmente, um nível diferente de investimento do que até mesmo um grande departamento de polícia pode fazer.
A longo prazo é possível diminuir, de fato, o uso da arma? As câmeras corporais podem desempenhar um papel importante na redução do uso de armas de fogo, mas não há uma única tecnologia que vá resolver todo o problema. As câmeras corporais podem permitir aos departamentos de polícia compreender melhor o que seus policiais estão realmente fazendo. Se pensarmos em um departamento de polícia, ele pode ter 50 mil policiais. Nós o vemos quase como um organismo em que há um cérebro que precisa saber o que está acontecendo com todas as partes do corpo. E, historicamente, não havia realmente uma maneira de os comandos saberem o que seus policiais estavam fazendo no campo de maneira confiável, porque a única maneira pela qual eles sabiam era por meio de relatórios tradicionais, escritos por pessoas no campo – que podem, ou não, ser totalmente autênticas e precisas em como as retratam. Os vídeos das câmeras corporais fornecem gravações reais do que está acontecendo no campo, para que a administração da polícia possa ter uma imagem muito melhor. E isso pode significar a implementação de novos protocolos. Na verdade, apenas a transparência ou a responsabilização das ações dos policiais sendo gravadas significa que eles vão pensar com mais cuidado sobre o uso da força ou do uso de uma arma de fogo.
Como as câmeras corporais podem ser usadas para melhorar a relação entre a polícia e a comunidade? Quando as câmeras corporais são implantadas, e policiais já me disseram isso mais de uma vez, os agentes se comportam melhor. É quase como um anjo da guarda sobre o ombro deles, lembrando-os de serem profissionais, porque estão sendo gravados. E, da mesma forma, o público reage da mesma maneira ao saber que está sendo gravado. Muitas pessoas perceberão que um uma pessoa racional se comportará muito melhor sabendo que será responsabilizada pela forma como se comporta diante da câmera.
Como as câmeras corporais podem ser usadas para prevenir a violência policial? Certamente existem casos em que policiais cometeram abusos de poder e depois mentiram sobre isso. Claro que também há momentos em que membros do público fazem coisas horríveis com policiais e depois acusam os policiais de falsidades. As câmeras corporais trazem a verdade real para ambas situações. Quando a câmera corporal está ligada, muda toda a presunção das coisas e, ao longo do tempo, vemos que as condutas violentas vão acontecendo cada vez menos nas polícias, porque há uma expectativa geral de que as ações serão gravadas.
A Axon atua em outros países além do Brasil. Quais experiências internacionais podem servir de inspiração para nós? A Polícia Metropolitana de Londres possui quase 22 mil câmeras corporais em uso. E conseguimos implementar todas os equipamentos em cerca de seis meses, a partir do momento em que a decisão foi tomada até a implantação completa dos dispositivos e do sistema de evidências. Já a polícia da Escócia utiliza nosso sistema em nuvem para coletar todas as suas evidências digitais e compartilhá-las com os procuradores. Eles compartilham com os advogados de defesa e, por fim, com os tribunais. E tudo isso acontece com a eficiência e facilidade de uso que você e eu usamos para aplicativos de consumo – obviamente, envolvemos camadas completamente diferentes de segurança e autenticação para atender a todos os padrões legais.
E o que isso significa? Em última instância, não apenas as câmeras e o sistema de gerenciamento de evidências são eficientes e eficazes para as autoridades de segurança pública implantarem, mas a justiça acontece mais rapidamente. Historicamente, quando o procedimento era tirar fotos digitais, gravar vídeos e arquivos e colocá-los em um CD, fazer uma cópia do CD e depois colocá-lo em uma pasta com papel e levar isso ao escritório de um promotor, era preciso revisar, fazer cópias, compartilhar internamente. Hoje, o que levaria meses para determinar o resultado de uma ação policial, agora está acontecendo com a velocidade da Internet.
Em São Paulo, a instalação de câmeras nas fardas de policiais militares contribuiu para redução de 40% da letalidade em 2022. Em 2023, no entanto, os números oficiais já mostram uma tendência inversa, com aumento de 26% dos casos. Qual sua leitura desses números? As taxas de violência sofrem influências que podem fazê-las subir ou descer. Há um certo grau de aleatoriedade nesses eventos, nos quais as câmeras corporais podem fazer a maior diferença na redução do uso inadequado de força letal policial em casos em que ela pode ter sido excessiva, fora das políticas ou impulsionada por raiva e emoção no momento. Acredito que é aí que as câmeras corporais fazem a maior diferença.
De que forma? Quando pensamos a longo prazo, podemos realmente reduzir os tiroteios e o uso letal da força policial por meio de armas não letais mais eficazes e de longo alcance, porque os policiais não usam armas para matar alguém. Eles usam armas letais porque são confiáveis. Portanto, estamos muito focados em aumentar a confiabilidade da opção menos letal. O exercício que proponho é: se os policiais tivessem o phaser do Capitão Kirk, de Star Trek, a maioria deles usaria isso antes de usar uma arma de fogo, porque essa arma futurística seria, na verdade, mais eficaz, com um alcance maior e simplesmente não mataria ninguém. Esse é o tipo de tecnologia que estamos tentando trazer para o mundo real.
Mas em quais formatos? Se a polícia tiver a capacidade de usar drones e robótica nesse tipo de situação, o drone ou o robô não precisam se preocupar em perder a vida. Isso dá ao comando policial mais tempo para avaliar a situação. É possível ter mais tempo mantendo os operadores humanos em níveis maiores de segurança. E acreditamos que isso será mais seguro para todos, não apenas para a polícia, mas também para o público com o qual os policiais estão interagindo.
Qual a posição do Brasil na escala de prioridades da Axon? Eu diria que o Brasil realmente se tornou nossa prioridade número um. Eu não tinha compreendido completamente, antes da minha recente viagem ao Brasil, o nível de desafio envolvido no policiamento no Brasil. Existem várias autoridades policiais que têm mais tiroteios fatais envolvendo policiais do que todo os Estados Unidos em um ano. Eu não sei quais são as causas subjacentes, mas isso torna o Brasil a minha prioridade número um.
E qual seu objetivo aqui? Minha missão na vida é tornar a bala obsoleta. Queremos encontrar alternativas, novas estratégias, novas tecnologias para evitar que a polícia se encontre em situações nas quais seja preciso atirar e matar alguém. E a melhor maneira de resolver esse problema é ir onde o problema é mais prevalente, onde podemos aprender mais rapidamente e potencialmente ter o maior impacto. Nosso objetivo ambicioso é acreditar que podemos reduzir em 50% as mortes relacionadas a armas de fogo entre a polícia e o público nos próximos dez anos, aqui nos Estados Unidos.
Casos de chacina, balas perdidas e outras tragédias envolvendo ações policiais são comuns no Brasil. A tecnologia tem o poder de acabar até mesmo com essas ocorrências? Com certeza. Esse é realmente o impulso por trás do que estamos fazendo. Quando a polícia dispara balas, os disparos não são perfeitos, ninguém consegue garantir isso. E assim, às vezes eles erram, às vezes essas balas atingem espectadores inocentes. Isso acontece em todo o mundo. E são tragédias, em que pessoas que nem estavam envolvidas acabam sendo mortas. E, às vezes, é por uma bala disparada por um policial. Provavelmente, essa é a área em que ter armas menos letais verdadeiramente eficazes e de longo alcance fará uma enorme diferença. Porque quando se comete um erro, há a certeza de que a pessoa vai sobreviver e é possível voltar atrás. Isso não é verdade quando você está usando força letal.